“Deus na escuridão” é um romance de 2023, escrito por Valter Hugo Mãe, ambientado na Ilha da Madeira, em Portugal. Uma saga de tirar o fôlego. Para ler as 236 páginas em duas semanas, como fiz nestas minhas férias de janeiro, é preciso coragem e desejo de aventura. Impacta. A minha percepção é de quem está diante de uma “cachoeira” com uma piscina natural à sua frente, convidativa, numa tarde de verão, a um mergulho. Se me permitem, só quem se atira poderá saborear a delícia de uma experiência ímpar de refrigério e prazer, comoção acima de tudo e a sugestiva inserção no mundo real da vida construída a partir do drama cotidiano de quem não perde a esperança. Espera-se o quê? Espera-se quem? É isto que, na minha opinião, a saga de “Felicíssimo e Pouquinho” procura oferecer como suave e preciosa indicação de resposta.
Advirto para alguns preliminares cuidados. A perseverança na leitura exige não se escandalizar com um arsenal de registros substantivos e adjetivos incomuns ao nosso português do Brasil, tais como: “trogalho”; “sarilho”; “ganante”; “incauto”; “buzico”; “refilão”; “estepilha”; “medriquinho”; “carreiro”; “bandalho”; “trogalho”; “maleita”; “algures”; “cachada”; “parvoíce”; “bêbera”; “tabaibo”; “berma”; “amedricado”; “afreimado”; “camilha”; “maleita”; “espatarrada”; “pincho”; “bilhardeiro”; “esbotenado”; “esconso”; “medrica”; “berloque”; “manono”; “ror”; “bulício”; “atilho”; “freima”; “códea”; “pisco”; “ascoroso”; “nenúfare”; “lacustre”; “dorida”; “cachada”; “arreliada”; “catatua”; “merdosa”; “flebi”; “cotovia”; “concelho”; “incúria”; “estertor”… dentre outros. E também a uma infinidade de verbos igualmente inusitados: “aperaltar”; “desenrarilhar”; “destrinçar”; “tremelicar”; “descoroçoar”; “anuir”; “bilhardar”; “fanicar”; “chapinhar”; “confrangir”; “mirrar”; “bulhar”; “medrar”; “sarapintar”; “barafustar”; “ganir”; “fanicar”; “tiritar”; “azoigar”; “deambular”; “avelhar”; “bulir”; “amolgada”; “deambular”; “podrir”; “chilrear”; “pipilar”; “ensarilhar”; “refilar”; “esgalgar” … igualmente dentre outros.
Vencidos estes pequenos impactos encontrados na nossa língua mãe, será possível colher um sumo inebriante que, com muita humildade recolhi e gostaria de lhes propor para o incentivo da leitura que, a mim, fez viajar no tempo e no espaço. Entre tantos e tão maravilhosos ensinamentos, recolhi os que agora aqui apresento para uma expectativa que pode apaixonar e encantar, sem, obviamente, por motivos de “spoiler”, atrapalhar o entusiasmo:
“Indicar o caminho de casa… é o segredo dos bons. O sinal mais sagrado do povo de Deus” (p. 216). Mas, “Deus espera na escuridão. Seu candeeiro é Seu nome à boca do filho… Quando encontrado, Deus apenas promete a alegria. Tudo o mais é falso”. (p. 130). … “Pode ser que não se sabe ver ou alguma coisa se perca no instante de virar palavra. As palavras são tão pobrezinhas diante das evidências maiores. E o susto emudece, emburre, cria tanta dificuldade em se poder prestar testemunho. Fica de tal maneira desconfiadas e esperançadas que haja um milagre a acontecer, que não fiquem quietas, distantes, sem receber parte do que o milagre contenha”. (p. 224). … “Deus é exatamente como as mães. Liberta seus filhos e haverá de buscá-los eternamente. Passará o tempo todo de coração pequeno à espera… Deus está na escuridão, e tateia por toda a parte na vontade intensa de um toque dos filhos (p. 125)”. … “Se Deus pudesse, escreveria a cada filho uma carta de amor para o convencer a vir em visita (p. 129)”. … “Deus é igual no campo do ouro, da prata e do latão” (p. 185). … “A solidão não tem serventia como fim. Não tem finalidade. É um lugar de passagem, igual a um corredor dentro de uma casa, onde não se permanece, ninguém ali dorme ou janta, ninguém instala sua festa no corredor”. (p. 210) … “Não sabemos nada e estaremos sempre sem saber. A única ciência que nos assiste é a de preferirmos amar. Quem prefere o amor vive no milagre, e o milagre é em toda a parte”. (p. 227) [… “A felicidade é para depois de muito custo. Mas, que custe é inevitável. É uma obrigação por sermos vulneráveis. Cheios de carências, tantas sem nome ou sem que as entendamos”. (p. 79)]. E … o “meu dinheiro é só este, o desejo da felicidade, o alívio das mágoas, que lhe aconteça sempre o amor dos filhos, o orgulho de os ter grandes e a graça de os ver sempre de visita a casa, o sentido da vida. O dinheiro que lhe dou não paga preços deste mundo. Mas explica este mundo e melhora a economia do outro”. (p. 228). [… “Por vezes, aqueles que amamos se corrompem de maldade, e o medo talvez seja a moeda com que o diabo lhes vai comprando a alma”. (p. 203). …, mas, “os gratos são sempre felizes”. (p. 121)
Dom Nivaldo dos Santos Ferreira
Bispo Auxiliar da Arquidiocese de Belo Horizonte