O Bicentenário da Independência do Brasil merece muitas análises, de especialistas e técnicos, para bem orientar governantes e representantes políticos, de modo a fortalecer instituições e segmentos que configuram o tecido cultural, político e econômico do Brasil, com seus avanços e retrocessos. As urgências são muitas, especialmente quando são considerados os cenários de desigualdades sociais e os riscos à democracia. As análises sobre o Bicentenário da Independência precisam contribuir para construir e fortalecer o devotamento cidadão, priorizando a importância insubstituível de cada cidadão para edificar uma sociedade mais justa e solidária, por meio de uma política melhor. Devotamento cidadão refere-se, pois, à contribuição participativa de cada pessoa nos processos permanentes que buscam promover o bem comum, a igualdade social, o sistema democrático e as relações capazes de harmonizar diferenças, tornando-as riquezas na busca pela paz.
Isso porque este momento eleitoral com debates e entrevistas, esforços para evidenciar o “lado mais forte” ou “mais fraco”, suas contradições, oferecem contribuições para definir os nomes a serem escolhidos nas urnas, mas são insuficientes. Para alavancar rumos novos urgidos, ante a quantidade de demandas e carências, é imprescindível a força que vem do devotamento cidadão, capaz de construir e impulsionar horizontes novos para a história do Brasil. Esse devotamento não pode ser confundido com desatinos de posicionamentos ideológicos que afrontam a sacralidade da vida e a busca por igualdade social. Precisa estar na contramão de lógicas excludentes e preconceituosas, para vencer situações insustentáveis, a exemplo daquela que esvazia o sentido pleno de cidadania para todos.
Sabe-se que muitos desvarios, em diferentes lugares, alimentando perseguições, indiferenças e manipulações, resultam da falta de substrato humanístico, esvaziando o sentido autêntico do devotamento cidadão, essencial para que todos se reconheçam pertencentes a uma nação que busca, cotidianamente, consolidar a sua independência, a partir da riqueza de sua história, de valores culturais e princípios morais inquestionáveis.
Por isso, exercitar-se na mútua compreensão é imprescindível, investindo no diálogo, na configuração de narrativas construtivas, capazes de bem administrar confrontos. Assim é possível se distanciar das polarizações que levam a violências físicas e verbais. A Semana da Pátria renova o convite para que todos assumam o compromisso de exercitar-se no devotamento cidadão, aquele que reconhece a pátria como valor maior que partidos políticos, mais importante que interesses oligárquicos. Esse exercitar-se contempla o esforço para qualificar a cidadania, buscando oferecer contribuições relevantes no exercício da liderança nas mais variadas responsabilidades cotidianas. Deve-se, ainda, tratar o próximo com reverência, considerá-lo o mais importante, conforme o ensinamento magno da espiritualidade cristã.
Muitas são as etapas de preparação para se alcançar um estágio adequado de devotamento cidadão. O primeiro passo será ter consciência da própria importância na configuração de uma sociedade renovada, mais justa, solidária e fraterna. Assim é possível qualificar ainda mais as próprias atitudes - tudo fazer com seriedade, tecendo em si uma moralidade que reverencia o bem comum, reconhece a sua sacralidade e identifica as urgências que afligem, principalmente, os mais pobres. No conjunto rico e plural das etapas a serem cumpridas para qualificar o devotamento cidadão, tenha-se como ponto de partida o reconhecimento de que cada cidadão é obreiro da paz. E obreiro da paz é quem assume a postura, simples e cotidiana, de fazer valer o respeito, movendo-se no caminho da solidariedade em relação aos pobres e fragilizados. Isto significa cultivar no próprio coração o anseio de promover a paz e de compreendê-la na sua dimensão de justiça e de igualdade social. A sociedade brasileira precisa contar com posturas altruístas emoldurando intuições criativas, capazes de mudar rumos - atitudes que expressam devotamento cidadão.
Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte
Presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)
Ilustração: Jornal Estado de Minas