“Então, para que a Lei?” Esta interrogação é apresentada pelo grande educador apóstolo Paulo, formado na escola de Gamaliel – conhecedor da Lei Judaica e seu fiel praticante. O Apóstolo faz essa pergunta para alargar o horizonte de seus interlocutores, possibilitando-lhes também uma compreensão fundamental e determinante: a Lei não esgota e nem pode aprisionar o bem maior. Na perspectiva da fé, Paulo ensina que nenhuma Lei é maior que a vida - dom de Deus, indo além das hodiernas e prejudiciais fragmentações. O Apóstolo diz: a Lei é como um educador que conduz as pessoas no seguimento de Cristo, aquele que superou toda Lei pela excelência de seu ministério e pelo ápice de sua oferta, fazendo valer o bem maior. Se a Lei não for compreendida como pedagoga no itinerário que leva a um bem maior, corre-se o risco de conduzir a aprisionamentos, revelando o horizonte obscurecido de seus intérpretes e de legisladores. Um obscurecimento provocado por mediocridades intelectuais que levam à leitura, à interpretação e à aplicação das leis a partir de perspectivas inadequadas. As consequências são prejuízos variados, muitos irreversíveis, apontando para o perigo de incautos no exercício do poder.
Não é tão difícil alcançar e apreender formulações normativas compiladas em códigos, artigos e parágrafos. Essas formulações, e consequentemente as decisões fundamentadas na Lei, devem contemplar um conjunto de nuances que, se forem desconsideradas, inviabilizam a promoção da justiça. Ora, é o mínimo que se pode esperar para não lesar patrimônios, não correr o risco de decisões inconsequentes, que inclusive ferem outros ordenamentos legais. Sem adequada sensibilidade, corre-se o perigo de parcialidades e inconsequências. Ainda mais grave: torna-se mais recorrente a formulação de inadequado juízo por desconhecer determinada realidade, decidindo simplesmente a partir de papéis postos à mesa. E muitos desses papéis, embora repletos de argumentações bem articuladas, estão contaminados por situações que atentam contra a própria justiça. Favorecem certos contextos que, por si, merecem sérios questionamentos, mas são poupados graças a uma militância advocatícia pavimentada por interesses pecuniários, não raramente espúrios.
Reconhecendo a importância da Lei, no seu imprescindível papel e tarefa irrenunciável, precisa brilhar no seu horizonte, como estrela-guia, a busca pelo bem maior. A Lei, por si, pode ser insuficiente na pavimentação do caminho que leva a esse bem, exigindo uma interpretação que ultrapassa as letras normativas para se alicerçar nos parâmetros da ética. Esses parâmetros indispensáveis ao processo interpretativo requerem ir além de um exclusivo objetivo de ocupar cadeiras para conquistar remuneração. Deve-se reconhecer que legislar, julgar e decidir - tendo a Lei como pedagoga - são exercícios para fazer valer e promover o bem maior. A garantia do bem maior exige muito mais do que uma simples “canetada”, que pode remeter a práticas abusivas de autoridade, maculando a lisura de processos por desconhecer realidades, desconsiderar circunstâncias e aspectos que ultrapassam o sentido e o alcance das próprias letras.
Compreende-se a obviedade a respeito da dimensão ética que a própria Lei, por si, não alcança. Trata-se de uma dimensão que ultrapassa o ordenamento legal e, se for desconsiderada, pode inclusive comprometer o propósito nobre e irrenunciável da justiça. Justamente em razão de fragilidades na observação de parâmetros éticos é que se convive com parcialidades, decisões inconsequentes, provocando riscos que atentam contra o sagrado direito de segurança das pessoas, desrespeitando ainda a normatividade da propriedade privada. Decisões que impedem a continuidade de relevantes serviços dedicados à comunidade, com prejuízos ao patrimônio ambiental e ao desenvolvimento integral.
Assim, o entendimento lúcido, nos parâmetros da ética e da normatividade, conduz à compreensão de que o bem maior é mais do que a Lei. Uma compreensão que precisa se consolidar e sempre prevalecer com a decisiva ação de líderes da sociedade. Aqueles que estão distantes de interesses cartoriais e parciais, e mais interessados na promoção do bem maior, reconhecem quando prejuízos são promovidos por inadequada aplicação de legislações. É hora de compreender, respeitar e viver esta verdade: o bem maior é mais que a letra da Lei.
Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte
Presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)
Ilustração: Jornal Estado de Minas